30 junho 2009

Piano de cauda rasgada

Nadine Puerto nascida no coração da Jamaica, estava à espera da entrada em palco como um avião no seu voo inaugural, os motores a funcionar para dali a nada se preparar para chegar aos céus. Também ela se estreava num palco grande. Uma gota que escorria pelas costas não a incomodava, as mãos mergulhavam de 5 em 5 minutos numa taça de vidro cheia de pó de talco só para não haver nenhum deslize na sua estreia.
O mestre de palco, do Centro Cultural da Ria, fez-lhe um sinal que marcava a hora e segredou-lhe “Tem calma miúda” fazendo um fornicoques na barriga, só para descontrair. O burburinho do público já se fazia ouvir há algum tempo, aqueles 5 metros até ao piano pareciam mais longos que o normal. A sua entrada foi do pior. Um prego mal martelado rasgou-lhe o vestido roxo acetinado e não ajudou muito o facto de Nadine o ter puxado como se Lúcifer não a quisesse deixar entrar. O público da estreia deu folga ao estofo das cadeiras de veludo e aplaudíu-a sem reparar no rasgão do vestido.
O silêncio tomou a sala por pouco tempo. As primeiras teclas a serem marteladas até se encolhiam sabendo que iriam ser sacrificadas pela suavidade irada da ponta dos dedos delgados de Nadine.
Com uma vénia, agradeceu a comparência de todas as pessoas.
O concerto começou e como ficara prometido, as teclas do instrumento de cauda de ébano polido serviram de saco de boxe para a raiva da pianista. Mas o que chegava aos ouvidos dos espectadores era um som harmonioso, nunca ouvido, até um pouco desconcertante, causando mau estar.
Não havia começado há muito tempo o concerto, quando um dedo selvagem socou uma tecla preta e de imediato outro dedo bateu ainda com mais força na mesma, fazendo-a saltar. Tal era a ira de Nadine lembrando-se de Sandra agarrada ao seu namorado, que os seus olhos cegaram na partitura e vingaram-se os dedos nos dentes pretos e brancos de Sandra. Era ela a culpada pelas teclas estarem a ser arrancadas à dedada. Chegou a tal ponto que Nadine começou a atirar as teclas que ficaram no seu colo para as primeiras filas indiscriminadamente. O público não percebeu e em caso de dúvida, no fim daquele apocalipse, a sala encheu-se de palmas, enquanto Nadine olhava para o piano desdentado.
Uma só tecla tinha ficado para memória, mas foi arrancada e guardada na mão que quase a liquidificara.
Não houve agradecimentos por parte da artista houve sim, para fechar o ramalhete, um coice, com tal raiva, na perna do piano que sucumbiu com as duas pernas no meio do palco.
Nadine nunca mais largou a tecla preta que tinha roubado ao piano como mostra da sua ira contra Sandra.
Nunca mais tocou piano, nunca mais se apaixonou e nunca mais se irou.

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