16 junho 2009

A Natureza tem piada

Mestre Gustavo Rafael conta às suas filhas, após ter-lhe sido lhe dado a extrema-unção, a razão para a sua mais polémica estátua.
A peça tinha 1,56 metros de altura e 79 centímetros de largura, toda em bronze maciço, de nome “A Natureza tem piada”.
Para uma pequena mão cheia de críticos, pouca piada tinha. Mas o que é que interessa ao Mestre grisalho? Ao contrário do que valia essa peça para si, nada. Sempre teve muito orgulho em tudo o que construiu e concebeu, incluindo, claro, as suas duas belas filhas, com olhos cor esmeralda e cabelo tirado do ouro mais brilhante que o sol consegue iluminar. Para ele, duas verdadeiras estátuas vivas.
“A Natureza tem piada” é uma peça bem estranha ou bela conforme a cabeça que a via: O busto é de um cavalo com as crinas ao vento, o corpo de uma mulher com os seios e a vagina tapadas com um véu, com uma cauda de sereia mais larga que os seus largos ombros e todo o seu corpo coberto por escamas de serpente. Esta peça e o seu criador viajaram pelos mais conhecidos museus do Mundo e por outros tantos que ficaram conhecidos após terem passado por lá. O Mestre era muito possessivo com esta peça, era como fosse a sua terceira filha. Sempre que aterravam vinha uma manada de jornalistas e curiosos com as mesmas perguntas mas em línguas diferentes.
-Por que gosta tanto desta peça?
-Esse ser existe?
-De onde vem essa inspiração?
Ele respondia-lhes sempre com uma caminhada calma e um olhar vago no infinito, como que os atravessasse. Só em Kuala Lumpur ele respondeu em português de Camões.
-As respostas ficam só para mim.
Ficou toda a gente atónita pois primeiro ninguém estava à espera que ele dissesse o que quer que fosse e segundo ninguém sabia português. Mesmo assim, daí em diante, as mesmas perguntas se iam repetindo de aeroporto em aeroporto, de galeria em galeria.
Após anos de viajar com a sua peça fez o primeiro comunicado à imprensa numa sala contígua ao seu ateliê.
“-Eu Gustavo Rafael destrui “A Natureza tem piada”, quer dizer, todos vocês que estão nesta sala e os vossos colegas de profissão ajudaram-me a pegar na estátua e todos nós a derretemos. Após isso as minhas lágrimas apagaram o rubro fogo que rebelava dentro do forno e só a câmara fotográfica e de vídeo instalada dos meus olhos gravou esse espectáculo por vocês patrocinado.”
Todos os jornalistas ficaram sem perguntas na ponta da língua, as máquinas fotográficas ficaram sem flashes e as de vídeo ficaram sem espaço no disco.
Para os apreciadores da sua obra ficaram tristes pelo desaparecimento da majestosa peça. É mentira. O Mestre escondeu a estátua debaixo de uma lona, no fundo do seu ateliê. A peça não fora nem será derretida. Era só uma manobra de diversão para os jornalistas o deixarem em paz.
Pois essa estátua é o amor da vida dele, é a mãe das duas esculturas que estavam a seu lado no leito da morte e que confessa algo que já deveria ter dito há anos às suas filhas.
-Ana Teresa é o nome da vossa mãe. Era a berlinesa mais bela e mais escultural de sempre com o cabelo pintado de ouro e uns olhos que pareciam esmeraldas. Vestia qualquer trapo e continuava bonita, até que encontrou este trapo e apaixonou-se numa das minhas viagens a Berlim. Veio comigo para Castelo Branco e passado um ano tinha vos começado a criar. Na altura eu pensei “Espero que saiam à mãe” e como que ela lesse os meus pensamentos disse, “Espero que saiam a nós”. Eu tinha razão, saíram à vossa mãe, ainda bem. Passado 3 anos, 2 meses, e 1 dia depois de vocês terem nascido acordei só na cama. Sem saber o que fazer fui vos deixar à vossa avó e fui reportar o caso à GNR, não me deram a resposta que eu queria. “Sim, já a encontramos.” Mas foi mais “Vamos fazer o que pudermos para encontrar a sua mulher.” Desenhei, naturalmente, as lágrimas que me arrefeceram face. O povo diz que o tempo cura, mas o que é que o povo sabe? Nada.
-Pai, queres um copo de água? – pergunta a Catarina, a mais velha.
Os olhos dele disseram que “Sim” e “Obrigado”. O copo vinha com a água quente como ele gostava para matar a sede. Mais calmo continua a história.
-Recebi no segundo dia de Janeiro de 1974 uma carta sem remetente, abri, vi uma foto horrível e lia na carta “Sou eu. Não te consigo explicar porque te abandonei e o que me aconteceu numa carta, mas continuo a amar-te. Beijos e muitas desculpas.” A minha revolta deu para fazer uma homenagem à vossa mãe em bronze.
Mas porque não fazer uma homenagem à nossa mãe quando ela era bela? Pensaram as gémeas. O Mestre ouvi-as.
“Esta não é a vossa mãe. E a vossa mãe não partilho com ninguém.”
Esta era a resposta que qualquer jornalista gostaria de ouvir e de escrever na sua coluna semanal de crítica artística, dissecar, explorar, subverter e ser entendida por outras cabeças de maneira a vender mais umas centenas de jornais.
O nome da obra deveria ser, “A Natureza não tem piada absoluta nenhuma, gosto mais dela em estado natural” mas era muito longo e antagónico.
Assim pôde morrer em paz.

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