24 maio 2006

Vi-o-la-ção-ou-di-ver-são

À beira da estrada nacional está uma mulher a pedir boleia. Páro o carro, abro o vidro e pergunto-lhe “Para onde vai”. De imediato, ela entra, a mala e o casaco voam logo para o banco de trás, como se estivesse em casa. A minha sobrancelha salta do sitio onde costuma estar.
Ainda parado, o meu telemóvel toca. Com um ar de tédio vejo que é a minha mulher. Um “foda-se!” sai-me de imediato.
"Oi tudo bem?... Ó amor jantar em casa da tua tia?... Está bem. É a que horas?... Vê se dá para adiar para as 21:30. É que eu ainda estou longe de casa... Está bem vá. Até já. Beijos."
Guardo o telemóvel e viro-me para a minha estranha companheira de viagem.
“Não me chegou a dizer para onde ia e como se chama?”
Silêncio, foi o que veio da sua boca. Eu volto a repetir a pergunta. Nada. Dou-lhe um toque no ombro e ela olha para mim e pega num bloco e começa a escrever “Vou-pa-ra-Bar-ce-lo-na”, li à medida que escrevia “Sou-sur-da-mu-da.”. Muito lentamente e alto disse.
“Tu-do-bem-eu-tam-bém-vou-pa-ra-lá” ela pega de novo no bloco e escreve “Sou-mes-mo-sur-da. 100%.”
Tiro-lhe o bloco da mão e escrevo o que tinha dito. Ela ri-se e acena-me com a cabeça.
“Isto é que vai ser uma viagem secante, com esta surda-muda ao meu lado sem abrir a boa.” E esboço um sorriso.
Com o arranque, um socorro aflitivo, preso e abafado sai do porta-bagagens.
"Cabrão da merda, tira-me daqui, sê um homem e tira-me daqui, filho-da-puta. Se é para me violares, seu maricas do caralho, tira-me daqui, enfrenta-me palhaço..."
Com uma voz muito serena.
"Cala-te para o teu bem, se te vou violar é depois de te tirar esses pulmões cá para fora. Não gosto de gajas que gritam. - Com um ar de regozijo - Tiram-me a tusa toda."
Passo superficialmente com a mão pelas calças, de modo que a senhora que vai no lugar do morto não reparasse, pois nesse momento já algo se tinha levantado.
"Paneleiro do caralho, és um merdas - pontapés na mala - antes de me tirares os pulmões tens de ter mãos para me tirar daqui."
"Quem te disse que te vou tirar daí com as mãos, tenho aqui uma surpresa bem afiada que encontrei numa estufa, Isso é que te vai tirar daí, não te preocupes, minha bela." esboço um leve sorriso.
Neste momento ela olha para mim, enquanto na bagageira continua a berraria, acena a cabeça e dá-me o bloco. “Es-ta-va-a-fa-lar-al-to”. Ela lê e guarda o bloco de novo na mala
"Já agora, não utilizes vernáculo, que fica sempre mal numa senhora bonita como tu."
Entramos em Barcelona, isto está mesmo muito diferente ou sou eu que não venho aqui há muito tempo e não me lembro como isto é... não tenho o adjectivo para qualificá-la.
Ela escreve o nome da rua e para lá nós vamos. Um pensamento vem-me assoma-se à cabeça “sempre que passo por um polícia olham sempre com muita atenção para o carro.” Tenho que descontrair, talvez seja só da minha cabeça. Eles só estão a olhar para mim porque eu estou a olhar para eles. Não ligo.
Paro e a minha companheira de viagem voluntária sai sem antes escrever um “Mui-to-o-bri-ga-da” no seu bloco de argolas. No porta-bagagens começa o tumulto silencioso mas com muitos pontapés e murros.
“Vamos a estar aí sossegados atrás. Já vamos sair. Não quero o porta-bagagens sujo.
"Eu tenho aqui duas mãos que vão dar cor à tua cara, quando estiveres a sangrar do nariz como o porco que tu és e com os olhos pendurados nas órbitas. Tira-me daqui cabrão."
"Eu não falava mais, - tiro o bilhete de identidade da carteira dela - ... Maria Adelaide Silva Fernandes, ah é viúva ou fizeste por o ser. És mais gira na foto."
"És um grande cabrão." e grita com tudo o que pode, enquanto esmurra e pontapeia o porta-bagagens.

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